Minha avó tem Alzheimer. No início, sua memória recente começou a falhar. Mas as lembranças mais antigas ainda estavam intactas. Ela não era capaz de se lembrar o que comeu no almoço, mas lembrava das viagens que fez, das músicas que compôs, dos poemas que escreveu. Se lembrava da família, quem eram todos os netos.
Com o tempo foi piorando e toda a memória se tornou uma grande névoa, sem certezas denomes, fatos, episódios. Tem dias melhores e dias piores. Mas muito dela já se foi com as lembranças que se perderam.
Quando me encontra, me pergunta repetidas vezes onde estou trabalhando e onde estou morando. Quatro ou cinco vezes seguidas a mesma pergunta, e a mesma resposta.
Ontem ela fez 82 anos. A família se reuniu para jantar. Ela perguntou mais de uma vez o por quê dos presentes, que ocasião era aquela. Mas ela estava feliz.
Ela estava mesmo feliz com todos os filhos e os netos reunidos ali em volta da mesa. Abraços, beijos, aconchegos, carinhos, palavras doces, presentes. Ela ficava feliz com tudo isso. E cinco minutos depois esquecia o presente dado, a palavra proferida.
Meu avô comprou um arranjo de flores lindo para ela e mandou entregar em casa. Cada vez que ela olhava o arranjo de flores, ela se alegrava e perguntava que flores eram aquelas e quem havia dado. Pouco depois se esquecia. Mas, quando tornava a passar pelas flores, novamente se deslumbrava, sorria e perguntava.
Ao contar isso no jantar, alguém disse que era um desperdício ter comprado as flores pra ela porque, afinal, depois que as flores murchassem e não estivessem mais lá, ela não se lembraria de nada mesmo.
Aquele raciocínio me pareceu muito cruel. Na hora, respondi: pelo menos ela sente a alegria como se fosse a primeira vez. Quem tem a oportunidade de sentir, mais de uma vez, a alegria como se fosse a primeira?
Uma resposta bastante ingênua, com certeza. Mas foi o que me veio a cabeça na hora.
Desde ontem, isso está martelando aqui minhas idéias. E não consigo deixar de achar muito cruel a lógica de que não seria válido dar à minha avó a alegria das flores, ou qualquer outra, só porque ela não se lembraria depois.
Só seria então válido proporcionar alegria e felicidade, dar amor e carinho, a alguém se esse alguém fosse se lembrar depois? A alegria é menos alegria e a dor é menos dor se depois a memória apaga o que sentimos?
Não. Alegria é alegria, dor é dor, pelo tempo que for. Mesmo que por um instante. Por um segundo. Lembrar depois, é só mais alegria ou mais dor.
Talvez, justamente porque não vai se lembrar no dia seguinte, minha avó mereça flores todos os dias. Porque não pode puxar da lembrança para reviver a alegria, precisa das alegrias instantâneas, os estímulos permantes. Flores todos os dias, em todos os cômodos da casa, para lhe proporcionar um sorriso surpreso a cada passo.
A felicidade, ainda que fugidia, é felicidade. E é sempre válida.