Três meninas. Três histórias diferentes que se encontram. Três linhas distintas de pensamento, que se unem formando um maravilhoso mosaico de histórias, ideias e experiências. Encontram-se nas afinidades e completam-se nas diferenças, enlaçando-se nas alegrias e tropeços da vida. Escrevem aqui para celebrar, compartilhar e aprender. Para refletir sobre as experiências do passado, as inquietudes do presente e as incertezas do futuro. Nessa sucessão de encontros e desencontros, buscam entender melhor o mundo. Tudo isso regado por um pouco de geografia, política, arte e muito ziriguidum!

domingo, 29 de maio de 2011

O sonho continua vivo...

Estive fora nos últimos dias em mais uma viagem com os meus alunos e apenas hoje, lendo as notícias da semana, fiquei sabendo da morte do Ex-senador Abdias Nascimento
Abdias Nascimento foi um grande militante na luta contra o racismo no Brasil. No período da ditadura foi preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional e viveu no exílio por 10 anos.
A sua vida foi dedicada a tratar de um assunto intratável no Brasil: O RACISMO.
Lutou para derrubar uma barreira muito evidente, mas invisível para os olhos de muitos nesse país, a barreira do preconceito, que impede uma real igualdade racial no Brasil, onde os negros possam ter uma verdadeira possibilidade de ascensão social.
Abdias sonhou com um Brasil menos hipócrita, que fingisse menos com relação a nossa "igualdade racial".
Em prol deste sonho, Abdias abriu grandes espaços como o Teatro do Negro e o jornal Quilombo. Além disso, foi um dos fundadores do Moviemento Negro Unificado no Brasil.
Abdias morreu sem ver o seu sonho realizado, mas certamente, foi uma figura que contribui muito para que o abismo existente entre as diferenças raciais nesse país fosse minimizado.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Como se sobrevive à guerra?

No meu imaginário, Serra Leoa sempre esteve associada aos mutilados de guerra, às crianças -soldado e a uma guerra civil extremamente violenta. Por isso também sempre me instigou ao mesmo tempo curiosidade e certo mal-estar. 

Quando conheci Madjana, em janeiro do ano passado, não conseguia parar de pensar que aquela mulher tinha, de alguma maneira, vivenciado aquela guerra. Como teria sido? E, acima de tudo, como ela tinha virado a página e seguido com sua vida? Madjana era uma mulher incrível. Bonita, inteligente, forte e muito animada. Que horrores teria ela visto? Que medos teria sentido? Durante a semana em que estivemos juntas, não tive coragem de perguntar. Tive medo de desencavar sentimentos enterrados. Acho que tive também medo do que ela poderia responder. 

Este mês, encontrei duas outras pessoas de Serra Leoa durante minha estadia na Tanzânia. Thomas e Christian. Christian é cientísta político e tem trinta e poucos anos. Um dia, durante o jantar, Christian começou a falar sobre seu país. Perguntei se ele estava lá durante a guerra civil (que durou de 1991 até 2000). Sinceramente, não estava interessada em saber a política da guerra. O que eu queria mesmo saber era como as pessoas comuns viviam durante a guerra. Como iam dormir toda noite, como almoçavam e jantavam, como iam ao trabalho... como se vive durante uma guerra tão violenta?

Christian me contou que estava sim em Serra Leoa durante todo o período da guerra. Morava em Freetown, a capital. Disse que, enquanto os conflitos estavam no interior, a vida na capital seguia de maneira relativamente normal. O problema foi quando o conflito chegou a Freetown.

Durante a tomada da capital, Christian estava em um prédio que veio abaixo e foi capturado pelos rebeldes. A primeira pergunta que fizeram ao capturá-lo: "você é combatente?!". Ele só teria alguma chance de sair ileso se não fosse, evidentemente, um combatente.

"E como eles decidiram se você era ou não um combatente?", perguntei. "Eu repetia desesperadamente que não era. Mas na verdade eles tem meios de verificar se você é ou não. O peso das armas deixa marcas específicas nos ombros. E o dedo cria um tipo de calo por causa do gatilho. Então, eles simplesmente tiraram minha blusa para ver meus ombros e analisaram meus dedos. Viram que eu não era um combatente. Me deixaram viver. Mas me capturaram e me levaram com eles".

Christian foi capturado e levado para o interior. Ficou sob posse dos rebeldes durante três semanas, obrigado a acompanhá-los de vila em vila, em acampamentos improvisados, ou no meio do mato. Ele me contou que quando os rebeldes tomavam uma vila, não dormiam nas casas porque não era seguro. Seria o primeiro lugar onde o exército atacaria. Eles dormiam então escondidos no meio do mato, ao redor da vila. Mas, para não dormir no chão duro, obrigavam os reféns a carregarem os corpos e juntá-los no chão formando um colchão de corpos humanos. Os rebeldes dormiam no meio do mato em um colchão de corpos.

Perguntei a Christian como foram essas três semanas, o que havia acontecido, como ele passou esse período. Ele não quis me responder. Só me disse "Renata, o que eu vivi, o que eu vi nessas três semanas... você não pode nem imaginar. É indizível". Respeitei seu desejo de silêncio. Certas memórias sepultadas não devem ser exumadas.

Christian foi libertado depois que o exército venceu os rebeldes em uma batalha local. Mas, antes de ser libertado, teve que provar mais uma vez que não era um combatente, mas um prisioneiro. Desta vez, foi um comandante do exército quem procurou marcas nos ombros e calos nos dedos.

Fiquei um bom tempo pensando que esse Christian, o cientista político que passou duas semanas ali discutindo orçamento público e  instituições financeiras internacionais; o homem educado e um tanto formal de fala doce e calma; o dançarino mais animado da festa de encerramento; esse Christian era o mesmo que ficou três semanas vendo e vivendo o "indízivel", carregando corpos que serviriam de cama para os rebeldes.

Como funciona isso? Como é que alguém que viveu os horrores da guerra, que viu o "indizível", vive depois uma vida comum? Como tolerar um cotidiano banal com a bagagem de um passado "indizível"? 

Acho que nunca vou entender realmente como é que Madjana, Thomas, Christian e outras milhares de pessoas encontram força e sanidade para viver a vida comum depois do "indizível" da guerra. Só sei que isso coloca um pouco as coisas em perspectiva pra mim. Afinal, não dá mais para reclamar de pegar ônibus cheio, de não ter tipo tempo de pintar o cabelo, da internet que não funciona, do celular que não pega... O que é tudo isso diante da vivência indizível da guerra?      

terça-feira, 17 de maio de 2011

Ujamaa, o Socialismo Africano


Ainda no embalo da minha viagem à Tanzânia, gostaria de compartilhar - ainda que superficialmente - coisas que aprendi e descobri durante minha estadia por lá. 

Descobri que o nome do país, Tanzânia, é resultado da junção de Tanganica e Zanzibar, o nome dos Estados que se uniram formando o novo país.

A união política entre Tanganica e Zanzibar foi liderada por Julius Nyerere, líder político de Tanganica. Nyerere liderou o processo de independência de Tanganica da Grã Bretanha e se tornou o primeiro presidente do território independente em 1962. Dois anos depois, a união dos dois territórios formou a Tanzania.

Nyerere ficou no poder até 1985 e durante este período implementou o que ele chamou de Ujamaa, ou o Socialismo Africano. Ujamaa em KiSwahili significa "família" ou "unidade".

Em um documento chamado a Declaração de Arusha (a cidade onde eu estava!), Nyerere desenvolve as idéias em torno de sua visão do socialismo e da proposta de um modelo de desenvolvimento para a África que seriam as bases do Socialismo Africano.

Um dos princípios básicos vem da idéia de que "uma pessoa se torna uma pessoa através do povo ou da comunidade", ou em outras palavras "eu sou porque nós somos". Essa idéia está presente em diversos contos e histórias da região. Uma delas, eu ouvi enquanto estive lá.

É a história de um homem branco que ao chegar em uma comunidade decide propor uma brincadeira às crianças. Ele pega um cesto cheio de doces e coloca ao pé de uma árvore e propõe às crianças que apostem corrida até a árvore. Quem chegasse primeiro ganharia todos os doces. As crianças então se colocaram em fila aguardando o sinal de início da corrida. Quando o homem deu o sinal, as crianças deram-se as mãos e correram todas juntas em direção à arvore e o cesto de doces. Chegando lá, compartiram os doces entre todos. O homem, não entendendo aquela situação, foi perguntar às crianças porque tinham feito isso, sabendo que poderiam ter corrido individualmente para conseguir ganhar o pote todo de doce. Uma das crianças então explicou: "Não quero ganhar todos os doces se todos os outros vão ficar sem nenhum. Eu quero ter doces se eles tiverem também. Eu quero que todos nós tenhamos doces". Eu sou, porque nós somos. 

A visão do Socialismo Africano foi abandonada pelos sucessores de Nyerere depois que ele deixou o poder, mas ainda está forte nas idéias de muita gente na Tanzânia e na África.

Nyerere apoiou diversos grupos que lutavam contra a colonização na África, entre eles a FRELIMO, Frente Nacional pela Libertação de Moçambique que lutava contra a ocupação portuguesa. Teve um papel importante na política regional nesse momento de descolonização e independência.

Atualmente, quando se faz evidente que os ajustes estruturais impostos pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional para os países africanos falharam em promover o desenvolvimento econômico e melhores condições de vida, há às vezes uma certa nostalgia no discurso de muitas pessoas em relação a esse período pós colonial de experiências socialistas. Na Tanzânia foi com Julius Nyerere, na Zambia com Keneth Kaunda, e por aí vai...

Outro dia, assisti uma entrevista com o Slavoj Zizek onde ele argumentava que onde governos de esquerda falharam gravemente, em geral, se abriu uma porta para a extrema direita e movimentos ultra conservadores. Seria muito bom se o contrário também fosse válido: onde o capitalismo e o neoliberalismo falharam, abre-se espaço para movimentos de esquerda e de promoção da igualdade e da justiça social. O capitalismo falhou na África. O que virá depois?