Três meninas. Três histórias diferentes que se encontram. Três linhas distintas de pensamento, que se unem formando um maravilhoso mosaico de histórias, ideias e experiências. Encontram-se nas afinidades e completam-se nas diferenças, enlaçando-se nas alegrias e tropeços da vida. Escrevem aqui para celebrar, compartilhar e aprender. Para refletir sobre as experiências do passado, as inquietudes do presente e as incertezas do futuro. Nessa sucessão de encontros e desencontros, buscam entender melhor o mundo. Tudo isso regado por um pouco de geografia, política, arte e muito ziriguidum!

sábado, 16 de outubro de 2010

Felicidade, ainda que fugidia

Minha avó tem Alzheimer. No início, sua memória recente começou a falhar. Mas as lembranças mais antigas ainda estavam intactas. Ela não era capaz de se lembrar o que comeu no almoço, mas lembrava das viagens que fez, das músicas que compôs, dos poemas que escreveu. Se lembrava da família, quem eram todos os netos.
Com o tempo foi piorando e toda a memória se tornou uma grande névoa, sem certezas denomes, fatos, episódios. Tem dias melhores e dias piores. Mas muito dela já se foi com as lembranças que se perderam.
Quando me encontra, me pergunta repetidas vezes onde estou trabalhando e onde estou morando. Quatro ou cinco vezes seguidas a mesma pergunta, e a mesma resposta.
Ontem ela fez 82 anos. A família se reuniu para jantar. Ela perguntou mais de uma vez o por quê dos presentes, que ocasião era aquela. Mas ela estava feliz. 
Ela estava mesmo feliz com todos os filhos e os netos reunidos ali em volta da mesa. Abraços, beijos, aconchegos, carinhos, palavras doces, presentes. Ela ficava feliz com tudo isso. E cinco minutos depois esquecia o presente dado, a palavra proferida. 
Meu avô comprou um arranjo de flores lindo para ela e mandou entregar em casa. Cada vez que ela olhava o arranjo de flores, ela se alegrava e perguntava que flores eram aquelas e quem havia dado. Pouco depois se esquecia. Mas, quando tornava a passar pelas flores, novamente se deslumbrava, sorria e perguntava.
Ao contar isso no jantar, alguém disse que era um desperdício ter comprado as flores pra ela porque, afinal, depois que as flores murchassem e não estivessem mais lá, ela não se lembraria de nada mesmo.
Aquele raciocínio me pareceu muito cruel. Na hora, respondi: pelo menos ela sente a alegria como se fosse a primeira vez. Quem tem a oportunidade de sentir, mais de uma vez, a alegria como se fosse a primeira?
Uma resposta bastante ingênua, com certeza. Mas foi o que me veio a cabeça na hora.
Desde ontem, isso está martelando aqui minhas idéias. E não consigo deixar de achar muito cruel a lógica de que não seria válido dar à minha avó a alegria das flores, ou qualquer outra, só porque ela não se lembraria depois.
Só seria então válido proporcionar alegria e felicidade, dar amor e carinho, a alguém se esse alguém fosse se lembrar depois? A alegria é menos alegria e a dor é menos dor se depois a memória apaga o que sentimos?
Não. Alegria é alegria, dor é dor, pelo tempo que for. Mesmo que por um instante. Por um segundo. Lembrar depois, é só mais alegria ou mais dor.
Talvez, justamente porque não vai se lembrar no dia seguinte, minha avó mereça flores todos os dias. Porque não pode puxar da lembrança para reviver a alegria, precisa das alegrias instantâneas, os estímulos permantes. Flores todos os dias, em todos os cômodos da casa, para lhe proporcionar um sorriso surpreso a cada passo.
A felicidade, ainda que fugidia, é felicidade. E é sempre válida.

13 comentários:

Patricia disse...

Lindo texto Rezinha!!
Felicidade para sua vozinha, mesmo que fugidia SEMPRE!!

http://www.youtube.com/watch?v=kyiqGumfGDw

Felipe disse...

Bacana o texto Re....olha, me vez lembrar de uma historia que ouvia quando eu acomanhava um asilo que talvez vocs ja conhecam.

Ela contava a historia de um casal de velhinhos onde a esposa estava com Alzheimer bem avancado e ja nao podia viver sem ajuda. Ja nao lembrava de ninguem mais, nem mesmo de seu marido. E por nao ter condicoes fisicas para cuidar dela, ele a colocou num asilo onde teria alguma assistencia.
Todo o dia ele ia visita-la, levando flores e vestido com a sua melhor roupa. Chegava, ficava do lado dela na cama por algumas horas. E ela dormindo quase sempre, sem nem ao menos saber quem era aquele ali que ficava todo dia com ela. Alias, todo dia eu que digo, porque pra ela era sempre a primeira vez.
Ate que um dia uma enfermeira do asilo, perguntou pro senhor:
- O senhor vem todo dia com flores e bem vesitdo, mas ela nem percebe, nem sabe quem eh o senhor.
- Pois eh minha filha, ela nao sabe quem sou eu, mas eu to aqui porque sei muito bem quem eh ela.

Eu acho linda essa historia...

Re, beijos de primeira vez na sua vozinha! Parabens pela sua sensibilidade!

Anônimo disse...

Bom, como vocês sabem, eu estou em greve, mas não podia deixar de comentar a sensibilidade, a delicadeza e a beleza do texto da Rê. Verdadeiramente emocionante.

Os estudos sobre o Alzheimer são muito diversos e, às vezes, díspares. Uns dizem que quem sofre da doença realmente vive em meio a esses lapsos da memória, mas como são lapsos não proporcionam nenhum sofrimento por não se lembrar, enfim.... Outros estudos não são tão otimistas.
De qualquer forma, prefiro pensar que é possível essa felicidade fugidia e compartilhar da sua idéia, Rê: Cada instante de repetição é um novo instante de aproveitar a felicidade. Que venham muitos!
Quem sofre é quem ama e está acompanhando... uma pena.

A história do asilo é comovente, Felipe!

Fidel disse...

Essa grevista aí, hein... num sei não...

Patricia disse...

Aiiii gente!!
Quero deixar todo mundo feliz hoje!!
Vou acabar chorando com vocês...
Primeiro fiquei com um nó na garganta quando li o texto da Rê, depois vem o Lipe "incendiário" enchendo meus olhos de lágrimas!!
Lindos os depoimentos!!
Fico feliz e honrada de ter ao meu redor corações sensíveis de almas encantadoras como as de vocês!!
Beijinhos carinhosos para todos

Henri disse...

Rê, você me fez chorar com o seu texto.
Lindo, delicado e comovente. Parabéns! Que bom que a sua avozinha tem uma neta com tanta sensibilidade para reconhecer o valor que esses momentos têm para ela.
Em minha família também estamos passando por uma época bem delicada, em que todo e qualquer pequeno momento de alegria é bem vindo e necessário. Acho que até pouco tempo eu não tinha uma noção real do carpe diem. Hoje, é o que tento praticar diariamente, me esforçando para não sofrer por antecipação e aproveitando cada momento com meus queridos.

Obrigada pelo lindo texto.

Carpe diem!

Beijos,
Henri

Henri disse...

Em tempo...lembrei muito do filme argentino O Filho da Noiva, do Juan José Campanella. É lindo e comovente. Pra quem ainda não viu, vale muito a pena assistir.

Beijo,
Henri

Renata disse...

Felipe, não conhecia essa história não. É linda, linda mesmo. Vou lembrar sempre de que "ela não sabe quem sou eu, mas eu estou aqui porque eu sei muito bem quem ela é". Obrigada por compartilhar a história, é linda mesmo.

Pati e Tati, obrigada pelas palavras carinhosas! Vcs são mesmo amigas queridas.

Henri, fico lisongeada que meu texto tenha te tocado assim. Espero que essa fase dificil na sua familia passe logo, e que vcs aproveitem todos os momentos de felicidade possíveis.

Eu vi esse filme sim, lindo demais! Tb recomendo!

Queridos, já estou aqui na Guatemala. A trabalho, claro. Espero dessa vez voltar inteira, rsrsrs. Depois conto como foi a estadia aqui.

Beijos.

Patricia disse...

Lindona,
não tem do que agradecer, suas palavras foram lindas!!
Henri minha flor,
o que anda acontecendo??
Lembre-se que gosto muito de ti e precisando de qualquer coisa é só gritar!!
Espero que essas dificuldades passem logo e o seu rubro sorriso volte a imperar!! :)
Fique bem!!

Beijos a todos!!

Fidel disse...

Rê...

Um dos textos mais bonitos que li nos últimos tempos. Eu me senti sentado junto com vocês almoçando e sorrindo a cada sorriso de contentamento da sua vó.

Alexandre disse...

Lindo o texto, lindo mesmo. E mais linda ainda a postura diante da vida. É por isso que eu sempre vejo flores em você, Rê. Flores todos os dias, como se fosse a primeira vez. Um beijo.

Renata disse...

Alexandre,
lendo essas palavras, me senti
em uma eterna primavera...obrigada.
Que bom que podemos compartilhar as flores da estação.
Um beijo.

Renata disse...

Fidel, obrigada!
Fico muite feliz que tenha gostado do texto!