Três meninas. Três histórias diferentes que se encontram. Três linhas distintas de pensamento, que se unem formando um maravilhoso mosaico de histórias, ideias e experiências. Encontram-se nas afinidades e completam-se nas diferenças, enlaçando-se nas alegrias e tropeços da vida. Escrevem aqui para celebrar, compartilhar e aprender. Para refletir sobre as experiências do passado, as inquietudes do presente e as incertezas do futuro. Nessa sucessão de encontros e desencontros, buscam entender melhor o mundo. Tudo isso regado por um pouco de geografia, política, arte e muito ziriguidum!

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Haiti: que futuro?


Hoje faz um ano que Haiti, um país já miserável e desestruturado, foi destruído por um dos piores terremotos de que se tem notícia.
No dia 12 de janeiro de 2010, um terremoto de magnitude 7 na escala Richter (muito forte) atingiu o país. O terremoto foi apenas a a 10km de profundidade, foi superficial e por isso causou maiores danos. Seu epicentro estava a 22km da capital Porto Príncipe, a região de maior concentração populacional.

O resultado foi um desastre de proporções inimagináveis. O terremoto deixou algo em torno de 230 mil mortos, mas nunca saberemos o número exato. Um milhão e meio de pessoas ficaram desabrigadas. Considerando que a população total é de 9 milhões, o número de desabrigados torna-se mais assustador.

Hoje, um ano depois, pouco foi feito: 1 milhão de haitianos ainda vivem em acampamentos provisórios para os desabrigados. As barracas de lona, distribuídas como medida emergencial logo após a tragédia, acabaram se tornando moradia permanente para essas pessoas. Apenas 15% das moradias temporárias (casas de madeira compensada e com forro de plástico corrugado, mais resistentes à chuva e ao vento que as barracas de lona) foram construídas. Menos de 30 mil pessoas conseguiram ser transferidas para casas permanentes. Apenas 5% dos escombros foram removidos nesses 12 meses.

O governo do Haiti calcula que sejam necessários mais de US$ 11 bilhões para a reconstrução. Em uma conferência realizada em março, em Nova York, doadores prometeram US$ 5,3 bilhões para ações de reconstrução nos próximos dois anos. 2,1 bilhões de dólares estavam previstos para 2010, mas menos da metade chegou efetivamente ao Haiti.

No processo de reconstrução e re-assentamento das famílias, uma questão importante surgiu: o acesso à terra, a titulação das propriedades. Muitos documentos foram perdidos. A maior parte das famílias não tinha o título de propriedade da casa onde morava, hoje destruída. Essas famílias têm o direito de ser re-assentadas no mesmo local, pois têm direito (por usucapião) sobre àquele pedaço de chão. Mas, como podem imaginar, isso virou um problema já que maior parte das famílias não pode provar pois perdeu tudo no terremoto. Muitas famílias estão sendo deslocadas para outras áreas.

Existe então uma grande discussão, e um certo impasse. Como reconstruir o país, re-assentar as pessoas, reconstruir casas e dar moradia, sem resolver a questão do direito à terra dessas população? É certo elas serem assentadas em outros lugares contra sua vontade? É certo elas não terem o direito de morar onde moravam antes, onde moraram durante anos? E, é certo gastar as verbas para reconstrução construindo moradia sem resolver a questão do acesso e do direito à terra? A reconstrução não é só levandar paredes, colocar tijolo sobre tijolo. A reconstrução deve passar também pela realização dos direitos de toda a população.

Quando aconteceu o terremoto, me lembro de pensar “meu deus, por que fazer o Haiti passar por isso? O país já não está ferrado o suficiente? Precisa de um terremoto desses?”. Não pareceu nada justo um terremoto dessas proporções se abater sobre o Haiti. Acho que muita gente deve ter sentido isso também.

Algumas pessoas podem pensar que esses desastres naturais, essas tragédias como tsunamis, terremostos, ciclones, tempestades etc, são naturais e que não poderíamos ter feito nada. Mas não é isso. As causas do terremoto são naturais, mas as conseqüências não são.

O impacto de um acontecimento natural depende da vulnerabilidade da região onde ele ocorre. Quanto maior a vulnerabilidade, pior o impacto. E pior também a capacidade de resposta; Um país, um Estado com estruturas e instituições mais sólidas e com uma economia mais forte tem maior capacidade de resposta do que um país com um Estado frágil, situação econômica e política instável.

Nesse aspecto, o terremoto no Haiti tinha mesmo tudo para ser uma das maiores tragédias que a gente já viu. Mas isso não tem nada de natural. Se olharmos para trás, veremos que não é por força da natureza que o Haiti é um país miserável, desestruturado, com uma economia dilacerada e um Estado inoperante.

O Haiti é uma ex-colônia francesa. É a república negra mais antiga do mundo, fundada por escravos libertados após uma revolução que levou à independência em 1804. O Haiti passou a ser temido, pois poderia servir como exemplo aos escravos nas regiões vizinhas. Desde os primeiros anos, sofreu bloqueio quase total tanto pelas nações metropolitanas e americanas independentes. Pela independência, foi obrigado a pagar pesadíssima indenização à França (hoje algo em torno de 2,5 Bilhoes de dólares que levou décadas para ser pago, e as custas de endividamento do pais). Nas décadas seguintes vivenciou diversas intervenções militares dos EUA.

Da segunda metade do Século XIX ao começo do Século XX, 20 governantes sucederam-se no poder. Desses, 16 foram depostos ou assassinados. Os EUA ocuparam e governaram o Haiti pela força de 1915 a 1934. Mas, mesmo apos a desocupação em 1934, os EUA continuariam exercendo grande influência através das ditaduras dos Duvaliers, Papa-Doc e seu filho Baby Doc. Estima-se que 40% da divida externa Haitiana foi contraída durante seus governos.

Depois de mais um período de grande conturbação política, foram realizadas eleições presidenciais livres em dezembro de 1990 e Jean-Bertrand Aristide tornou-se em 1990 o primeiro líder eleito do Haiti, mas foi expulso do país após um golpe militar em 1991. Retornou ao poder com apoio dos Estados Unidos: mas a condição para receber apoio era a abertura do país ao comercio exterior. A tarifa cobrada caiu de 35% para 3%, os fundos do governo desviados do desenvolvimento agrícola para o pagamento da divida. A conseqüência: crise dos agricultores haitianos.

A abertura comercial está destruindo a agricultura haitiana. O Haiti é o terceiro importador de arroz dos Estados Unidos. O arroz norte americano (pesadamente subsidiado) entra com tarifas baixíssimas no país e chega ao mercado local pela metade do preço do arroz nacional, impossibilitando a sobrevivência dos pequenos produtores locais. Em 1987, o Haiti produzia 75% do arroz que consumia. Hoje, 75% do arroz consumido é importado dos EUA. Inacreditável ,né?

Além disso, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas (ONU) e os EUA impuseram sanções econômicas ao país para forçar os militares a permitirem a volta de Aristide ao poder. O elevado número de refugiados haitianos que tentavam ingressar nos EUA fez aumentar a pressão americana pela volta de Aristide. Em maio de 1994, o Conselho de Segurança da ONU decretou bloqueio total ao país. No período de 1994-2000, apesar de avanços como a eleição democrática de dois presidentes, o Haiti viveu mergulhado em crises.

Em 2004, conflitos armados eclodiram em no país, e Aristide deixou o Haiti e Aristide deixou o País em 29 de fevereiro e asilou-se na África do Sul. No mesmo ano, o Conselho de Segurança da ONU aprova uma Missão de Paz, a MINUSTAH, para restabelecer a segurança e garantir a transição até a realização de eleições presidenciais.

A presença da MINUSTAH no país, apesar de muito valorizada e elogiada no Brasil, tem muitas controvérsias. Já houveram denúncias de violência, abuso de poder, civis mortos, bloqueio à assitência médica para civis e socorro às vítimas, estupros e exploração sexual, mulheres executadas enquanto dormiam, e por aí vai.... Um enviado da OAB ao Haiti chama a MINUSTAH de “tropa de ocupação”, que “valida os abusos aos direitos humanos contribuindo para um estado de permanente repressão”.

Acho que já falei aqui sobre o livro da Naomi Klein chamado “A doutrina do choque”. A situação do Haiti me remete a idéia da autora de que crises são oportunidades utilizadas atualmente como pretexto para impor políticas que não podem ser impostas em tempos normais de estabilidade. Países que passam por crises extremas estão desesperados por ajuda, qualquer auxílio financeiro, e portanto não estão numa posição que lhes permita negociar em pé de igualdade .
O Haiti vive uma situação de crise extrema e está vulnerável a esse tipo de política de choque. Só para terem um exemplo, logo após o terremoto a Heritage Foundation (um instituto de pesquisa conservador ligado ao Partido Republicano nos EUA) afirmou em seu site: “Em meio ao sofrimento, a crise no Haiti oferece oportunidades aos Estados Unidos. Além de prover assistência humanitária imediata, os Estados Unidos, em resposta à tragédia, tem a oportunidade de redesenhar o governo e a economia do Haiti, há muito tempo disfuncionais, e melhorar a imagem dos Estados Unidos na região.”

Fica a pergunta: que tipo de reorientação, que novo desenho? E servirá a quem?

Um comentário:

Patricia disse...

É Rê,
infelizmente o "sonho de terras livre", para muitos, é um sonho distante!
Mas enfim, muitas vezes do extremo caos emergem forças de grandes transformações!
Vamos torcer por transformações profícuas no Haiti!