Três meninas. Três histórias diferentes que se encontram. Três linhas distintas de pensamento, que se unem formando um maravilhoso mosaico de histórias, ideias e experiências. Encontram-se nas afinidades e completam-se nas diferenças, enlaçando-se nas alegrias e tropeços da vida. Escrevem aqui para celebrar, compartilhar e aprender. Para refletir sobre as experiências do passado, as inquietudes do presente e as incertezas do futuro. Nessa sucessão de encontros e desencontros, buscam entender melhor o mundo. Tudo isso regado por um pouco de geografia, política, arte e muito ziriguidum!

sábado, 2 de abril de 2011

"Dizem que ela existe pra proteger..."

Cada vez mais tenho dúvidas dessa designação...

Dando continuidade à postagem da Taty, sobre temas absurdos que se sucedem continuamente e nos dá uma sensação de "déjà vu" coletivo, vou relatar uma série de fatos acontecido na noite de ontem, que nos mostram mais uma vez a arbitrariedade da nossa polícia (que não é novidade) e a hipocrisia da nossa sociedade.

Na noite do dia primeiro de abril (ontem), embaixo dos Arcos da Lapa, um dos símbolos da boemia carioca, uma série de ataques absurdos da Polícia Militar do Rio de Janeiro se sucederam, de maneira completamente leviana, configurando um cenário de tensão e indignação, que parecia uma pegadinha de mau gosto do dia da mentira, mas que infelizmente era tudo verdade.

Dois policiais militares da 5a. Delegacia de Polícia atacaram de maneira leviana menores de rua e um grupo de pessoas que continham estudantes, professores, editores e outros profissionais, que se reuniam para tocar.

O ataque foi realizado com sprays de pimenta, o novo brinquedinho da PM do RJ, dado pelos nossos governantes, para manter a ordem e a segurança do povo do nosso estado.

O cenário era de descontração e integração, um grupo de pessoas, amantes do Maracatu, se reunia nos arcos da Lapa para cantar e tocar. O clima de alegria contagiava as pessoas que passavam pelo local. Em pouco tempo, turistas, frequentadores da Lapa das mais diferentes classes sociais e moradores de rua, agregaram-se à batucada.

A alegria foi tomada pela tristeza, quando ao final da brincadeira, uma viatura da polícia passa apressadamente no meio das pessoas atrás de alguns meninos de rua, que supostamente tinham roubado uma correntinha de ouro, de uma menina.

A viatura pára num determinado momento, chama um dos meninos até a janela do carro. O menino ao se aproximar e puxado pela camisa pelo policial que conduzia o veículo e em seguida recebe um jato de spray de pimenta no rosto e é empurrado para longe do carro, que arranca pela praça na “caça aos bandidos”.

Logo depois dirijo-me ao menino para prestar socorro. Era uma criança negra de aproximadamente uns oito anos de idade, que chorava por causa das agressões sofridas.

Se o caso parasse por ai, já tínhamos elementos suficientes para nos indignarmos e termos mais uma vez aquela péssima sensação de um déjà vu coletivo. É aquele velha equação dos estereótipos, onde negro + pobre=suspeito.

Entretanto, como sempre falo, as coisas sempre podem ser piores no nosso Brasil varonil! Os policiais voltam e pegam duas crianças suspeitas, dentre elas, o mesmo menino que havia auxiliado anteriormente. Colocam as duas crianças sentadas no chão, ao lado da viatura e junto com as “vítimas” do roubo começam uma sessão de averiguações.

Eu me aproximo da viatura e vejo um dos policiais pegar a lata de spray de pimenta para ameaçar as crianças. Falo para uma das “vítimas” do roubo: “Vocês acham que esse tipo de atitude é realmente necessária por um cordão?”

A menina respondeu: “O policial não fará nada, ele só está ameaçando.” Eu respondi: “Eles não vão só ameaçar, até mesmo porque eles já jogaram o spray no menino que está no chão, porque eu mesma o ajudei.”

Ao ouvir isso, um dos policiais dirige-se a mim e com a toda a sua autoridade que lhe é de direito, reponde: “Eu estou aqui para defender a ordem e queria ver se você tivesse sido a vítima se o seu discurso seria o mesmo.”

E para dar continuidade ao seu serviço sujo de manter a cidade limpa, o policial também atacou-me com um jato se spray de pimenta no rosto e ao me afastar pela ardência que senti nos olhos, o policial seguiu-me jogando mais pimenta nas minhas costas.

A reação dos policias provocou uma indignação generalizada nas pessoas que estavam no local, que interceptaram o policial para que ele pudesse parar de me atacar.

Agora eu pergunto: Que ordem é essa que a nossa polícia quer estabelecer? Que diabo de “Estado Democrático de Direito” é esse que vivemos? Alguém pode explicar que democracia é essa onde uma cidadã que paga seus impostos, que é uma professora, que não tem nenhum registro criminal é atacada sem a menor justificativa, por aqueles que teoricamente deveriam preservar a minha segurança.

Não havia justificativa para esse ataque. Eu não “desacatei uma autoridade”, eu não agredi ninguém, eu não alterei a minha voz, eu simplesmente cometi o grave erro de defender os direitos de uma criança negra, pobre, moradora de rua, que teoricamente tem esses direitos preservados por lei, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, onde no Artigo 5° diz: Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Não era eu que estava atuando fora da lei para ser agredida de maneira tão negligente. Mas eu cometi o sério erro de defender o lado errado.

A sequência de absurdos não pára por ai, várias outras pessoas que se indignaram com essa situação e que estavam defendendo o que era certo, mas do lado errado, como eu, foram agredidas com spray de pimenta e uma dessas pessoas terminou a noite presa por “desacato a autoridade”. Ótima desculpa para se impor ainda mais o direito de autoridade e reprimir ainda mais àqueles que não se calam contra o abuso do poder.

Terminamos a noite com mais um nítido retrato que a nossa polícia defende a ordem e o bem estar social de uma parcela muito seleta da sociedade. Que a polícia que dizem que existe para cooperar e proteger, abusa do poder que lhe é outorgado para reprimir de maneira violenta todos àqueles que não concordam com a “ordem” que estão estabelecendo.

Voltamos para as nossas casas indignados e com uma angustiante e triste sensação de impotência perante esse sistema vil que não respeita as leis, que não defende o cidadão sem discriminação e que não funciona para todos.

Dormimos com a certeza que pesadelos como esses e outros piores, ocorrem todos os dias em nossa cidade e que a nossa capacidade de reverter esse quadro é muito reduzida e o sonho de uma sociedade menos hipócrita e mais atuante é algo ainda muito distante...

10 comentários:

Anônimo disse...

Paty, infelizmente o seu triste relato não me choca. Vocês sabem que eu trabalho com os sem-teto do Centro do Rio e, para nós, práticas policiais como essas não só não são exceções como são a regra. Já passei por isso.
De qualquer forma, a indignação está se tornando algo cada vez mais raro na nossa sociedade: Todo mundo acha tudo muito normal, tudo correto. Sem nenhum senso crítico.
Na quarta-feira passada meu pai foi ao Engenhão torcer pelo Fluminense (Neeeeeense!! Fiu-fiu-fiu!) e experimentou algo bem parecido.
É minha gente, meu pai, um homem maduro, que está com um problema físico por conta de uma doença já há algum tempo, tem dificuldades para andar, foi agredido por um policial. Tudo por causa de um comentário que, como o da Paty, foi considerado "inapropriado". Havia alguns torcedores na arquibancada com faixas criticando o Muricy Ramalho (por sua saída do Fluminense). Uma delas, que estava próxima do meu pai dizia "Muricy Amarelão". Um policial chegou perto do torcedor que a carregava e arrancou a faixa de suas mãos, ao que foi imediatamente indagado pelo meu pai: "o que é isso? Há censura nos estádios agora? Isso é liberdade de expressão. O senhor não pode retirar a faixa do rapaz!" Diante desse comentário do meu pai, todo mundo em volta começo a gritar, e em seguida todo o estádio: "DITADURA! DITADURA!" (isso não aparece na TV...). Adivinhem o que aconteceu? O policial lançou um jato de spray da pimenta na cara do meu pai, da minha prima (uma moça que estava lá com o tio e não havia dito nada) e em vários torcedores!! Absurdo completo.
Por que isso? Para quê? Quem precisa desse tipo de polícia e desse tipo de tratamento? Quem? Um médico em um estádio de futebol? Uma professora com um grupo de música? Cidadãos Sem-Teto? Uma criança de OITO ANOS? QUEM?
É demais para mim..

Anônimo disse...

Paty,
tomei a liberdade de encaminhar seu relato à minha lista de e-mails.
Isso é muito grave para não circular de forma mais ampla... beijos!!

Patricia disse...

Taty,
relatos como esses não me surpreendem, mas conseguem me chocar sempre!
Eu fico constantemente chocada com a forma como o abuso de poder é permitido neste país. Como as verdadeira vítimas desse sistema falido e nojento, não tem voz. Como sem tetos, meninos de rua e tantos outros passam por humilhações e repressões levianas e simplesmente nada acontece!
Mas enfim... O importante é não perdermos a nossa capacidade de nos indignarmos.
Pode encaminhar o texto pra quem você quiser. O que nos resta é denunciar mesmo!! Não podemos silenciar perante tantos abusos!
Manda ver menina!!
Tô contigo! :)

Fidel disse...

Estou enviando o link para a imprensa.

Henri disse...

Nossa, Paty...tô chocada!
Como você disse, também não me surpreende, mas me choca muito. E me entristece.
Vou mandar pra minha lista também.

Beijos.

Bruno disse...

Retrato do País, muita coisa errada, a impunidade impera, ainda mais quando se trata desses marginais fardados, quando é da patota eles acobertam.
Envie o relato pro Boechat e Rodolfo na BandNews.
Parabéns pelo Blog, foi a primeira vez que entrei, bem interessante!
Bruno.

Anônimo disse...

Obrigada, Bruno! Volte sempre!!

Eliane disse...

Repasso este relato completamente indignada, por não ter outra palavra que melhor explique meu sentimento ao lê-lo.
O mais absurdo é ficarmos assim, sem sabermos a quem recorrer, pois os casos se sucedem e eles continuam desafiando a tudo e a todos, achando-se inatingíveis... Realmente,também é demais pra mim...
Taty, querida, transmita meu abraço à Paty.

Lili

Patricia disse...

Bruno, obrigada pelas dicas!
Já encaminhei um e-mail para alguns meios de comunicação. Afinal só nos resta denunciar, porque justiça de verdade eu não espero desse sistema. Mas muito obrigada pelas dicas!

Lili, a sensação de impotência é o pior de tudo!!
Você Vai prestar depoimento e a polícia debocha da sua cara. Sabemos que a atitude de depor e denunciar não vai dar em nada e nem o direito de mandar uma meia dúzia de palavrões para um cidadão desse para desabafar nós temos, porque senão acabamos presos por desacato a autoridade. É bizarro!!!
Mas agradeço de coração o seu abraço solidário!

Voltem sempre!!

Beijos

Renata disse...

A atuação da polícia do Rio... bom, sem comentários né? Seu relato é o exemplo perfeito do modelo de polícia que temos aqui.
E a gente tem mesmo é que fazer barulho por todos os meios possíveis e que estão ao nosso alcance para acabar com essa violência, abuso de poder e autoridade!