Três meninas. Três histórias diferentes que se encontram. Três linhas distintas de pensamento, que se unem formando um maravilhoso mosaico de histórias, ideias e experiências. Encontram-se nas afinidades e completam-se nas diferenças, enlaçando-se nas alegrias e tropeços da vida. Escrevem aqui para celebrar, compartilhar e aprender. Para refletir sobre as experiências do passado, as inquietudes do presente e as incertezas do futuro. Nessa sucessão de encontros e desencontros, buscam entender melhor o mundo. Tudo isso regado por um pouco de geografia, política, arte e muito ziriguidum!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Como se sobrevive à guerra?

No meu imaginário, Serra Leoa sempre esteve associada aos mutilados de guerra, às crianças -soldado e a uma guerra civil extremamente violenta. Por isso também sempre me instigou ao mesmo tempo curiosidade e certo mal-estar. 

Quando conheci Madjana, em janeiro do ano passado, não conseguia parar de pensar que aquela mulher tinha, de alguma maneira, vivenciado aquela guerra. Como teria sido? E, acima de tudo, como ela tinha virado a página e seguido com sua vida? Madjana era uma mulher incrível. Bonita, inteligente, forte e muito animada. Que horrores teria ela visto? Que medos teria sentido? Durante a semana em que estivemos juntas, não tive coragem de perguntar. Tive medo de desencavar sentimentos enterrados. Acho que tive também medo do que ela poderia responder. 

Este mês, encontrei duas outras pessoas de Serra Leoa durante minha estadia na Tanzânia. Thomas e Christian. Christian é cientísta político e tem trinta e poucos anos. Um dia, durante o jantar, Christian começou a falar sobre seu país. Perguntei se ele estava lá durante a guerra civil (que durou de 1991 até 2000). Sinceramente, não estava interessada em saber a política da guerra. O que eu queria mesmo saber era como as pessoas comuns viviam durante a guerra. Como iam dormir toda noite, como almoçavam e jantavam, como iam ao trabalho... como se vive durante uma guerra tão violenta?

Christian me contou que estava sim em Serra Leoa durante todo o período da guerra. Morava em Freetown, a capital. Disse que, enquanto os conflitos estavam no interior, a vida na capital seguia de maneira relativamente normal. O problema foi quando o conflito chegou a Freetown.

Durante a tomada da capital, Christian estava em um prédio que veio abaixo e foi capturado pelos rebeldes. A primeira pergunta que fizeram ao capturá-lo: "você é combatente?!". Ele só teria alguma chance de sair ileso se não fosse, evidentemente, um combatente.

"E como eles decidiram se você era ou não um combatente?", perguntei. "Eu repetia desesperadamente que não era. Mas na verdade eles tem meios de verificar se você é ou não. O peso das armas deixa marcas específicas nos ombros. E o dedo cria um tipo de calo por causa do gatilho. Então, eles simplesmente tiraram minha blusa para ver meus ombros e analisaram meus dedos. Viram que eu não era um combatente. Me deixaram viver. Mas me capturaram e me levaram com eles".

Christian foi capturado e levado para o interior. Ficou sob posse dos rebeldes durante três semanas, obrigado a acompanhá-los de vila em vila, em acampamentos improvisados, ou no meio do mato. Ele me contou que quando os rebeldes tomavam uma vila, não dormiam nas casas porque não era seguro. Seria o primeiro lugar onde o exército atacaria. Eles dormiam então escondidos no meio do mato, ao redor da vila. Mas, para não dormir no chão duro, obrigavam os reféns a carregarem os corpos e juntá-los no chão formando um colchão de corpos humanos. Os rebeldes dormiam no meio do mato em um colchão de corpos.

Perguntei a Christian como foram essas três semanas, o que havia acontecido, como ele passou esse período. Ele não quis me responder. Só me disse "Renata, o que eu vivi, o que eu vi nessas três semanas... você não pode nem imaginar. É indizível". Respeitei seu desejo de silêncio. Certas memórias sepultadas não devem ser exumadas.

Christian foi libertado depois que o exército venceu os rebeldes em uma batalha local. Mas, antes de ser libertado, teve que provar mais uma vez que não era um combatente, mas um prisioneiro. Desta vez, foi um comandante do exército quem procurou marcas nos ombros e calos nos dedos.

Fiquei um bom tempo pensando que esse Christian, o cientista político que passou duas semanas ali discutindo orçamento público e  instituições financeiras internacionais; o homem educado e um tanto formal de fala doce e calma; o dançarino mais animado da festa de encerramento; esse Christian era o mesmo que ficou três semanas vendo e vivendo o "indízivel", carregando corpos que serviriam de cama para os rebeldes.

Como funciona isso? Como é que alguém que viveu os horrores da guerra, que viu o "indizível", vive depois uma vida comum? Como tolerar um cotidiano banal com a bagagem de um passado "indizível"? 

Acho que nunca vou entender realmente como é que Madjana, Thomas, Christian e outras milhares de pessoas encontram força e sanidade para viver a vida comum depois do "indizível" da guerra. Só sei que isso coloca um pouco as coisas em perspectiva pra mim. Afinal, não dá mais para reclamar de pegar ônibus cheio, de não ter tipo tempo de pintar o cabelo, da internet que não funciona, do celular que não pega... O que é tudo isso diante da vivência indizível da guerra?      

4 comentários:

tati disse...

O que eu me pergunto (tenho me perguntadacadavez mais isso...) é como nós podemos dormir todasas noites, jantar, almoçar, reclamar do trânsito, pintar o cabelo, as unhas e SABER que tudo isso acontece com pessoas como nós. GENTE como nós. Eu penso nisso e fico sem palavras. às vezes eu choro. Desculpem a pieguice... Vemos tantas coisas no dia à dia que me fazem refletir sobre quão injustos e egoístas nós somos... Quão pouco fazemos para mudar pequenas coisas...

Daniel Farina disse...

Prima: acho realmente lastimável a continuidade de atrocidades como as guerras mas, embora devamos ter compaixão pelos outros e tentar fazer desse mundo um lugar melhor, será que temos que carregar o peso dos erros e sofrimentos de todos sobre nossas costas? Devemos agir e não chorar, ou nossas vidas parecerão insignificantes a ponto de não terem mais valor.. Podemos também evitar o egoísmo, mas como tudo o que nos concerne nos importa, não devemos, portanto, menosprezar as trivialidades de nosso cotidiano, que devem ter seu devido lugar.
Afinal, o importante é a nossa contribuição. Você faz coisas boas por quê? Quem julga a validade de suas ações?
Do meu ponto de vista você tem feito sua parte, deveria se orgulhar e sentir bem.

Beijos do seu primo que ao ler artigos como esse se envergonha por saber que faz tão pouco pelos outros, mas ainda assim não consegue sair da inércia!

Le monde au Poivre. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hermenêutica de nós dois disse...

Antes mesmo de terminar a leitura do texto eu já pensava em como podemos reclamar tanto da vida. Ao atingir a conclusão do mesmo constatei que a autora refletiu da mesma maneira. Obrigado por dividir conosco tamanha e indizível experiência. Histórias assim dão sentindo maior ao nosso cotidiano, impregnado de mazelas tolas, frutos da ausência de vivências e de trocas tão profundas.